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Uma agulha num palheiro

As alfaces vinham depois e, quando a massa já estava cozida, Isabel escorria-a e regava-a com um fio de azeite. Deixava-a arrefecer um pouco, antes de juntar tudo numa travessa branca, pintada com linhas azuis e pequenos floreados.

por Bernardo Leais

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Isabel vivia numa casa típica alentejana. Construída em taipa como manda a tradição, a casa é sempre muito fresca no verão e acolhedora no inverno. Todos os anos, no início da primavera, a minha tia sobrepunha a camada antiga de cal, que cobre as paredes da casa, ao aplicar uma nova e suave demão. Era um trabalho duro, cansativo, mas sempre o fez com tanto prazer que eu nunca tive coragem para a questionar sobre o assunto. Tornara-se uma função obrigatória, que lhe estava no sangue. Aprendera a caiar em pequena, muitas vezes sentada num fardo de palha durante toda a tarde, enquanto via a sua mãe de um lado para o outro.

A casa foi construída num pequeno monte, junto a uma amendoeira enorme. Todos os dias, a luz do sol toca as suas paredes brancas durante a manhã, e, ao final da tarde, a amendoeira cobre-a de uma sombra refrescante que cresce de ano para ano. No verão, assim que os galos cantam e o nascer do sol encontra o seu caminho até ao interior do meu quarto, eu saio para aproveitar o fresco das primeiras horas do dia. Respiro fundo e olho em volta. Não há nada na linha do horizonte, nada que indique a presença do homem. Apenas sobreiros, planícies intermináveis cobertas de flores, um lago ao fundo e a horta.

Uma “agulha num palheiro” foi o nome que a tia Isabel atribuiu àquela casa, não só por causa do seu pequeno tamanho em relação a toda a paisagem que estava à volta mas, também, porque sempre que alguém nos queria visitar só dava com ela depois de quatro ou cinco tentativas.

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As férias da escola duravam todo o verão, mas eu só estava com a minha tia durante o mês de agosto. No Alentejo, esse é o mais quente dos meses do ano e por várias vezes tentei convencê-la a construir uma piscina. Invariavelmente, a resposta era sempre a mesma:

– Ah, essas modernices. Não quero nada disso por aqui! Qual piscina qual quê… Tu estás é maluco se pensas que vou esburacar o meu quintal para construir um tanque só porque tens calor! – Costumava ficar zangado com ela. No início, não percebia o porquê daquela maneira de ser tão obstinada mas, à medida que os anos passaram, encontrei uma certa razão de ser naquela recusa intransigente.

Para a minha tia a horta era o mais importante. Era o seu emprego, a sua tarefa diária. E era, com tudo o que plantava na sua preciosa horta, que Isabel me compensava pelo facto de não querer construir uma piscina. Nela cresciam os ingredientes da sua assinatura culinária; a “Salada Fresca”, nome que nasceu de uma tentativa de provocação em resposta às minhas constantes reclamações por causa do calor. No fundo, a minha tia equilibrou uma balança imaginária, que de um lado tinha o meu bem-estar e do outro as suas convicções.

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Como Isabel aprendera a caiar as paredes da casa, também eu me sentava atento a assistir enquanto fazia a sua salada. Era uma receita simples, mas que resultava num prato muito refrescante e saboroso.

O processo era, todo ele, uma história. Antes de começar, a minha tia preparava todos os utensílios. Organizava a bancada com uma precisão incrível, colocando tudo no seu devido lugar por ordem de utilização. O primeiro passo era aquecer a água, depois abrir o pacote de massa com uma tesoura, aplicando um corte preciso na parte superior. Qualquer que fosse o dia, hora ou estação, a minha tia usava sempre a mesma massa: Espirais, de preferência tricolores.

Depois, ia buscar um frasco das amêndoas que a amendoeira lhe dava todos os anos. Pegava numa faca e cortava-as em finas fatias. Ralava a cenoura e triturava um punhado das framboesas, que depois emulsionava com vinagre, azeite e mostarda Dijon, para fazer molho vinagrete. Temperava tudo com um pouco de sal e pimenta.

Com muito cuidado, colocava em camadas o molho vinagrete, as espirais, depois os mirtilos, as framboesas e as amoras. Pegava em queijo feta, esfarelava-o e colocava por cima. Depois, juntava a cenoura ralada e as amêndoas laminadas.

As alfaces vinham depois e, quando a massa já estava cozida, Isabel escorria-a e regava-a com um fio de azeite. Deixava-a arrefecer um pouco, antes de juntar tudo numa travessa branca, pintada com linhas azuis e pequenos floreados.

Muitas vezes, a minha tia nem percebia que eu a estava a observar. Estava tão concentrada que, só no final, quando ia com a travessa na direção da messa da sala, é que me via sentado, sorridente, em cima da máquina de lavar roupa.

– Olha olha, a espiar-me! – dizia com um sorriso de orelha a orelha. – Anda, vamos comer que não te quero com calor.

A minha tia Isabel deixou nesta casa muito da sua personalidade, e ensinou-me a dar mais atenção aos pequenos detalhes da vida. Hoje, sou eu que caio as paredes e faço a “salada fresca”. No entanto, quando cozinho vou olhando para trás, porque sei que na máquina de lavar onde outrora eu me sentei está uma pequena menina a observar-me.