
Momentos de Aletria
“Sabes, é que a aletria já está na família há muitas gerações e é, ao fazê-la, que me vêm à cabeça as minhas mais queridas recordações. A minha Avó fazia aletria todos os meses, pelo menos uma vez. Os meus irmãos e eu adorávamos e fazíamos de tudo para a convencer a fazer mais.”
Reza a lenda que, no final do século XVI, uma menina de doze anos cortou os seus cabelos loiros para se disfarçar de rapaz, e embarcou numa caravela rumo a Marrocos para combater. Antónia Rodrigues, António para os seus companheiros de batalha, cedo se destacou na arte da guerra, para, séculos mais tarde, ser recordada pela população local como o “terror dos Mouros”.
Senti uma aura de valentia nas ruas de Aveiro. Talvez se tenha convidado a entrar no meu pensamento, depois de me ter sido contada a história de Antónia Rodrigues, mas, a verdade, é que vejo nesta gente uma rara força de espírito.
Foi à conversa com Deolinda Soares, uma senhora residente em Aveiro há 62 anos, que pude confirmar os meus pressentimentos. António, o seu marido, faleceu quando ainda levavam cinco anos de casamento, e desde então que Deolinda faz jus à lenda aveirense. Também ela se reinventou, para conseguir educar os seus sete filhos sozinha, e se fez António. Uma Mãe valente que, hoje em dia, se orgulha dos sacrifícios que fez. Uma mãe que diz, de peito cheio, que criou sete filhos “saudáveis e fortes, à moda de Aveiro”, sem precisar de homem algum.
A receita, disse-me Deolinda, foi uma educação com pulso firme, mas sempre com momentos de aletria. Parei. Perguntei a Deolinda se queria ter dito “alegria”, mas, com um largo sorriso, logo me explicou que não se tinha enganado.
– Não – prosseguiu – não me enganei. Sabes, é que a aletria já está na família há muitas gerações e é, ao fazê-la, que me vêm à cabeça as minhas mais queridas recordações. A minha Avó fazia aletria todos os meses, pelo menos uma vez. Os meus irmãos e eu adorávamos e fazíamos de tudo para a convencer a fazer mais. Lembro-me de lhe puxar o avental e de convencer os meus irmãos a fazerem o mesmo. Éramos umas pestes! – ria-se –. – Foi então que a minha Avó deu este nome a esses momentos. Momentos de Aletria. E começou a usá-los para todas as ocasiões das nossas vidas, boas e más. Mesmo nas alturas de tristeza e de choro, havia sempre um momento de aletria para voltarmos a sorrir. Foram esses momentos que nos uniram como família. Foi nessa altura que percebi que nunca mais me separaria dos meus irmãos, porque estávamos ligados por esses momentos.
Consegui ver saudade nos olhos de Deolinda, mas não vi tristeza. Não se sentia infeliz, apesar de viver sozinha numa casa que outrora rejubilou de vida.
Contei a Deolinda que a palavra aletria vem do Árabe – al itriyaa –, que significa al (os) e tria (fios), e que a sua receita, pensa-se, foi trazida para a Península Ibérica pelos Mouros, entre os séculos VIII e IX. Não pude deixar indiferente a ironia que isso representava; o facto de ver, incorporada em Deolinda, a lendária força que levou a menina Antónia Rodrigues a combater os Mouros, o mesmo povo que trouxe, séculos antes, a receita para todos os momentos de aletria que viveu na sua infância.
Cá em casa nunca entraram ovos moles

Contei, também, que a aletria foi o primeiro tipo de massa feita com trigo-duro da cozinha árabe e mediterrânica. Logo depois, Deolinda esboçou um sorriso sobranceiro e disse, pausadamente – Sim, eu sei. E também é verdade que há dois tipos de aletria. Lá para cima, no Minho, é mais cremosa. Cá, na zona das Beiras, é de consistência mais compacta. Até dá para cortar às fatias! – disse, ajeitando-se no cadeirão. – É para veres como as coisas são aqui por estas bandas, temos todos uma educação mais “dura”. Cá em casa nunca entraram ovos moles. – disse, antes de soltar uma gargalhada que me fez sorrir -.
Aveiro esteve sempre ligada ao comércio do mar, à pesca e à produção de sal. A famosa ria, que sustenta o termo “Veneza de Portugal”, atribuído à cidade, foi formada por interveniente das correntes marítimas e fluviais, as vagas, os ventos, e o próprio levantamento do solo. Não posso deixar de associar este desgaste, erosão e insistência por parte da natureza, à missão em que Deolinda embarcou quando decidiu educar os seus filhos com todas as suas forças. Por vezes, por mais agreste que seja a dureza dos elementos, é dela que resulta o que há de mais belo.

Antes de chegar à porta, Deolinda agradeceu a minha visita e interesse na sua história. Abriu-a, despediu-se com um abraço, e disse – Acho que não foi por acaso que me vieste visitar. Tens cabelos de anjo, que é como os brasileiros chamam à aletria, sabias? – Eu sorri e agradeci com um gesto de cabeça. – Olha, vou-te contar uma coisa, para que possas chegar a casa e surpreender a tua mulher. Quando fizeres aletria, cozinha-a em água com açúcar e raspas de limão. No final, deitas um pouco de canela. Mas, o verdadeiro segredo, são sementes de romã. – E acabou a frase com um olhar de satisfação enorme.
Conforme me afastava da porta de sua casa, pensei nos seus sete filhos. Cada um tinha crescido com uma educação dura, mas polvilhada com canela e sementes de romã. Os irmãos, como as sete letras da palavra Aletria, só têm sentido se estiverem juntos. E, no melhor e no pior, foi Deolinda quem os ligou.