
Migração com cabra ao colo
A capacidade de superação é uma característica preciosa, especialmente quando estamos fora da nossa zona de conforto (…)

A capacidade de superação é uma característica preciosa, especialmente quando estamos fora da nossa zona de conforto, sem as referências e os apoios a que nos habituámos onde estamos enraizados. Mas, mais do que uma forma de vencer medos e inseguranças, a superação pode colocar-nos na rota das maiores experiências humanas da nossa vida, fazendo-nos crescer.

Em 2015, na Mongólia Ocidental, documentei e segui a migração de uma família nómada Cazaque, naquela que foi a expedição fisicamente mais desafiante da minha vida, em linha com a imponência das montanhas e a monumentalidade dos vales. Com a ajuda de um interprete local, consegui encontrar uma família que nunca havia contactado com estrangeiros e explicar como considerava especial o seu modo de vida, razão pela qual gostaria de embarcar na epopeia de migrar centenas de Iaques, cavalos e ovelhas através das agrestes estepes mongóis, seguindo-os a pé. Não foi preciso um intérprete para perceber, no olhar do patriarca, “este é louco, certamente!”. Mas um sorriso move montanhas, pelo que o louco foi aceite, porventura porque pensaram que ia desistir no primeiro quilómetro — e seriam 150km, em cinco dias.
(…) senti que a família me tinha abraçado, o louco sorridente.

Verdade seja dita, quase que estiverem corretos. Os pés doíam, os músculos queriam ceder a cada rocha ultrapassada, a mochila parecia pesar uma tonelada e a água mal chegou para as primeiras horas do trajeto. O objetivo de vida tornou-se simples e focado: chegar do ponto A ao ponto B, vivo de preferência. Foi neste preâmbulo de miragens e alucinações que uma cabra juvenil sucumbiu às mesmas dificuldades, abdicando de seguir a manada, resignada com o seu destino. Julguei que, naquele contexto, travar todos por causa de um não seria uma opção, por isso fiquei surpreso quando percebi que a família decidira que a cabra tinha que ser ajudada. E foi! Ora ao meu colo enquanto andava a pé, ora na cela do cavalo do líder da migração, o esforço conjugado levou-a até ao local da pernoita, coberto pelo manto das estrelas.
Naquele momento de pausa, senti que a família me tinha abraçado, o louco sorridente. Tendo como mesa o solo e como banco uma pedra, a prova deste reconhecimento veio sob a forma de um repasto partilhado, com carne e queijo secos que eram transportados nos alforges, acompanhados por um trago de vodka para aquecer. Num mundo acelerado, onde até a comida tem que ser rápida, foi bom perceber que a partilha de uma refeição é dos atos de maior proximidade e intimidade que o ser humano tem. Sem pressas, sorria ao pensar nisto. Eles também. A pequena cabra baliu, por isso calculo que estivesse de acordo.