
Ainda sou do tempo
Felizmente, ainda sou do tempo que o tempo não apagou.

Ainda sou do tempo em que parte do verão era passado na casa dos avós, no coração do Alentejo, onde o calor se fazia sentir 24 horas por dia, onde as semanas eram passadas numa azáfama demorada em cima da bicicleta, para aqui e para acolá, entre expedições pelos campos em busca das mais doces amoras e os maravilhosos mergulhos na barragem, em esquecer o tempo infinito que passava a jogar às escondidas com todos os meus primos.
Ainda sou do tempo em que nessa pequena aldeia – aquelas em que tudo o que acontece, acontece numa única rua principal sabem? – não havia uma única cara desconhecida, onde todos se entreajudavam, onde ao domingo todos se vestiam a rigor para ir à missa e onde a banda sonora era o relógio da terra a relembrar-nos a passagem do tempo a toda a hora. Às vezes tirava-nos o sono, outras nem dávamos por ele.

Ainda sou do tempo em que esperávamos o ano inteiro pela festa da aldeia, em que a participação nos preparativos e a decoração das ruas era tão importante quanto os próprios festejos. Aquele pequeno lugar alentejano enchia-se de habitantes, emigrantes e visitantes que vinham matar saudades e ver o que tínhamos preparado com tanta boa vontade e alegria, paravam para admirar a procissão e ouvir a banda tocar… eu orgulhosa, sorria ao ver o meu avô a desfilar, tocando trompete com mãos trabalhadoras, enchendo de música e vida aqueles momentos de verão inesquecíveis. Isso sim era festa.
Ainda sou do tempo em que a oficina do meu avô, mestre sapateiro, era um baú onde apetecia remexer, com cheiro a tinta e a diluente, com moldes de madeira pendurados por número e uma bancada marcada por anos de trabalho, acolhendo instrumentos que o tempo teimava em aguentar, nem que fosse com um pouco de fita-cola a prolongar o prazo de validade daqueles cabos gastos. Quando não estava sentado a trabalhar na sua cadeira baixinha, estava na horta, a apanhar aqueles gloriosos figos da índia, especialmente para mim.

Ainda sou do tempo em que apreciava os rituais da minha avó, das lides da casa às idas ao pão e à mercearia, sem esquecer o mais importante – aquelas paragens estratégicas para dois dedos de conversa com as amigas vizinhas e as vizinhas amigas. É que a minha avó vivia no seu tempo, mas também o contrariava: não era uma cozinheira a preceito, mas dava sabor à vida de outras formas. E eu não só não me importava, como ainda dava uma ajuda. Eu fazia questão de acompanhar todas as refeições com massa e, estivesse onde estivesse, quando era hora de ir para casa pô-la a cozer, havia sempre alguém para me avisar, nem que fosse o relógio da aldeia.
Felizmente, ainda sou do tempo que o tempo não apagou.