
384 horas
Não há duas viagens iguais. Nem aquelas que fazemos aos mesmos sítios.

Não há duas viagens iguais. Nem aquelas que fazemos aos mesmos sítios – há sempre alguma coisa diferente a carimbar no passaporte e nas recordações, seja a estação do ano, a companhia, o nosso estado de espírito, o propósito da viagem, a forma como chegamos até lá… foi assim connosco há uma mão cheia de anos quando decidimos embarcar numa viagem de comboio por várias cidades europeias, em busca de uma experiência culinária genuína.
Um buffet aberto de imagens e cenários, sons, sabores e sensações – o não saber o que nos espera ao virar da esquina, parar numa estação de comboio e preparar-nos para conhecer um sítio que nunca vimos, entrar com expectativa no décimo restaurante novo, o cansaço normal deste tipo de viagem, o peso da mochila às costas, que parece ter ficado mais leve com os dias ou então mais fácil de carregar.
Faz tudo parte da viagem.

Como o primeiro hotel onde ficamos em Hendaye, com a sanita a escassos metros da minha almofada e uma misteriosa mancha a denunciar que aquele espaço já tinha visto melhores dias; ou a bonita cidade francesa de Limoges, decorada com as suas iguais bonitas loiças tradicionais; ou Bruxelas, uma cidade com pouca alma onde espreitamos a famosa estátua do menino a urinar e seguimos com pressa; ou Amesterdão que nos encheu verdadeiramente as medidas e onde demoramos junto aos seus canais infinitos e no meio das multidões de bicicletas. Chegar e viver Salzburgo como se estivéssemos a entrar num mundo completamente à parte e onde deixamos uma lembrança nossa na célebre ponte dos cadeados foi um ponto alto, seguido de Veneza com as suas ruas menos cuidadas e a transbordar de turistas, uma desilusão momentaneamente esquecida com a visita à praça de São Marcos e aos incontornáveis canais. Das cidades contemporâneas e ruidosas para a costa francesa, um mergulho paradisíaco no mediterrâneo foi capaz de nos lavar o cansaço e o espírito.

Há sempre uma banda sonora do viajante que vamos construindo à medida que os dias passam e que parecem alojar-se no nosso repertório auditivo para sempre, como o ritmo do comboio que ora embalava, ora despertava; ou a animação à beira rio na Áustria com os residentes a desfilarem orgulhosamente os seus trajes tradicionais; o som dos turistas e as suas dezenas de dialetos a turistar; a brisa e as ondas serenas das praias de Nice e do Mónaco; a melodia da mais nostálgica música italiana enquanto jantávamos tranquilamente a saborear tudo aquilo que nos enchia a alma.
Foi precisamente em Roma que comi uma fantástica pasta com salmone que me fez ter saudades de casa… e tantas outras delícias que também deixaram saudades: os coloridos mercados de fruta suculenta em Amesterdão, a inseparável dupla petiscos-cerveja em Salzburgo; as espetaculares e muito francesas moules à volonté; o mercado de San Miguel que explodia com petiscos que só os espanhóis sabem fazer e que, curiosamente, já sabia a casa.
É claro que na gaveta das memórias sensoriais ficam sempre alguns aromas e sabores que preferimos esquecer, como aquelas pernas de frango em molho de tomate servido com uma papa esquisita com que inauguramos esta aventura ou aquela longa e dura noite em que atravessamos a Alemanha e tivemos como companheiro de viagem um cheiro avinagrado a pés… mas depois é só recordar aquele pequeno “hotel-castelo” em Amesterdão com os seus quartinhos simpáticos e os armários secretos no corredor com torneiras, de onde saía água a ferver para podermos preparar uma chávena de chá, esticar as pernas e pensar faz tudo parte da viagem.
De Badajoz a Madrid, o balanço foi este: 16 dias, 6678 km, 15 cidades, 10 hotéis, 45 refeições, 1679 fotografias, 384 horas. Sinto que não são as horas na nossa vida que contam, mas sim a forma como vivemos essas horas. E é quando saímos da nossa zona de conforto que realmente viajamos.
Viajar é um buffet aberto: sirvam-se, degustem até ao último segundo, repitam sempre que possível.